A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado. A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se de faca e baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma.
Marina Colasanti
2 comentários:
Acostumar-se com algo...
Faz-me lembrar de uma música dos titãs que tem um trecho que diz: "E não nada que você não se acostume. Cala a boca e aumenta o volume então!".
Essa música faz referência a outras músicas, a outros tipos de músicas. Mas, sempre a vejo de maneira mais ampla e complexa.
O texto da Marina Colassanti que, aliás, é brilhante. Fez-me lembrar dessa música e de todo este acostumar da vida que se desgasta acostumando.
Mas será mesmo que nós nos acostumamos com tudo? (risos)
Obs.: “Mas o que eu não me acostumo é com a solidão” (Tim Maia)
Errei! (risos)
* "E não há nada que você não se acostume. Cala a boca e aumenta o volume então!".
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